O livro foi tirado de circulação por ter sido acusado de ser racista. Entenda o caso e conheça alternativas de obras para utilizar com sua turma!
“É a história de uma menina com cabelo crespo, que decide alisá-lo, mas depois percebe que pode ser mais feliz com ele natural.” Em um resumo de duas linhas, o livro Peppa, de Silvana Rando, pode parecer uma obra sobre a aceitação de cabelos cacheados. Mas não se engane. “Nunca foi sobre nada disso”, nos contou a autora por entrevista telefônica. “Eu achei importante discutir como as crianças acabam se obrigando a seguir determinados padrões e, com isso, deixam de aproveitar a infância.”
A leitura da blogueira Ana Paula Xongani é diferente e fez nascer uma polêmica que resultou no recolhimento dos exemplares à venda. Em 2016, ela fez um vídeo (veja abaixo) no qual comentava a obra. Para a youtuber, o livro ressalta velhos estereótipos que pairam sobre os cabelos crespos: a ideia de um cabelo “duro”, “ruim” e feio é ressaltada. “Imagine você, uma menina de cabelos crespos, lendo esse livro. Você gostaria de ser a Peppa?”, questiona Ana Paula.
O racismo que quase ninguém vê
A polêmica que envolveu o livro toca num ponto sensível: como o racismo é muitas vezes invisível (tema também tratado na reportagem O Racismo Nosso de Cada Aula). A autora reforça que nunca teve a intenção de tratar de questões raciais. Na primeira publicação que fez no Facebook, ela ressalta essa ideia:
“O racismo é sutil e às vezes até subliminar”, afirma Waldete Tristão, doutora em Educação pela USP e consultora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Diversidades (Ceert). Isso significa que, mesmo sem a intenção, podemos reforçar preconceitos e estereótipos raciais. Pode acontecer, por exemplo, ao usar expressões que ninguém desconfia que são racistas. “Não ter a intenção não elimina a agressão que pode ser feita às crianças que leem esse livro”, comenta Waldete.
“Meu erro foi ter comparado o cabelo da personagem ao aço, que lembrou como a palha de aço – conhecido como Bombril – sempre foi associado ao cabelo de meninas negras como maneira de tentar ofendê-las”, admite Silvana. Outras passagens da obra que podem ser entendidas como manifestações sutis do racismo:
– A mãe de Peppa usa um alicate para cortar alguns fios do cabelo da menina: essa ação remete à ideia de que o cabelo de pessoas negras é “duro”;
– A mãe de Peppa usa seu cabelo para fechar um pacote de biscoitos: é racista fazer o uso do cabelo como um objeto – e não como parte importante da identidade da personagem;
– O sonho de Peppa em ter um cabelo liso: ela mostra não estar feliz com seu visual e os adjetivos relacionados ao cabelo liso (macio, incrível, reluzentes, sedoso) reforçam que esse tipo seria mais desejável que outro.
– A ida ao cabeleireiro: pentes quebrados, alicates, serras – tanto os instrumentos quanto a reação da cabeleireira (que acabava o tratamento exausta) – reforçam a ideia de que o cabelo cacheado é ruim.
Autocrítica: reconhecendo que o livro é ofensivo
Após receber várias críticas pelas redes sociais, Silvana decidiu retirar o livro de circulação (veja a publicação dela abaixo). “Um relato de uma senhora mexeu muito comigo e foi fundamental: ela me mandou uma solicitação de mensagem dizendo o quanto o livro falava sobre a realidade que ela viveu como criança. Pedir o recolhimento do livro foi meu modo de dizer: ‘eu me importo com você e ouvi o que você tem a dizer’”, nos contou a autora.
Racista ou não? Como saber
A youtuber e a especialista Waldete recomendam algumas ações para garantir que as escolas não acabem adotando livros que ofendam minorias:
– Abra as portas da escola: deixe que pais e pessoas da comunidade frequentem a escola e tenham acesso às obras adotadas pela instituição;
– Ouça as opiniões de todos: não minimize reclamações feitas por pais. Às vezes, por mais que você discorde da posição apresentada (muitas pessoas não acharam que o livro de Silvana era racista), tomar alguma atitude é importante para garantir que nenhuma criança ou família se sentirá ofendida;
– Procure livros que valorizem a diversidade: diversas obras paradidáticas valorizam a diversidade e ajudam a desconstruir imagens prejudiciais sobre crianças negras. Tente incorporá-las nas suas práticas. Veja aqui uma lista de livros e outros recursos que podem ser usados no trabalho em sala de aula. (Wellington Soares- Nova Escola)